USP oferece tratamento para amor e ciúmes patológicos – 23/10/2025 – Equilíbrio e Saúde

Em “Dom Casmurro” (1899), Machado de Assis deixa uma dúvida sem resposta: Capitu traiu ou não traiu Bentinho? No livro, o marido mantém suspeitas constantes e irracionais sobre a fidelidade da esposa, vigia seus passos e alimenta uma obsessão que provoca sofrimento intenso. As ações do personagem afetam não apenas o casal, mas também pessoas próximas e até o filho.

Esse tipo de comportamento ilustra como o amor e o ciúme podem se tornar patológicos quando passam a dominar o comportamento e gerar sofrimento intenso. No Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), casos assim são acompanhados pelo Programa de Transtornos do Impulso, que oferece tratamento gratuito a homens e mulheres durante todo o ano.

Os chamados amor e ciúme patológicos se manifestam quando o vínculo afetivo é marcado por dependência emocional, preocupação constante com a vida do parceiro e dificuldade em conter comportamentos de cuidado ou vigilância.

Criado em 2006, o programa recebe dois grupos de pacientes por ano, com cerca de 12 participantes em cada turma. A maioria é formada por mulheres (cerca de 75%).

A psicóloga Andréa Lorena da Costa, coordenadora da equipe de amor e ciúmes patológicos do Instituto de Psiquiatria da USP, afirma que essa predominância feminina está ligada ao fato de as mulheres buscarem mais ajuda em saúde mental e saúde em geral.

As inscrições ficam abertas durante todo o ano pelo email amor.ciume@gmail.com. Alguns meses antes da abertura de cada grupo, a equipe faz uma triagem em que seleciona os novos pacientes. O programa é voltado exclusivamente para questões que envolvem relações amorosas —conflitos familiares, por exemplo, ficam de fora.

Pacientes que apresentam comportamento violento motivado por ciúme patológico também são acolhidos pelo programa. “Os ciumentos podem ser violentos em casos extremos. Isso mostra mais ainda a necessidade de tratamento”, diz Costa.

Importante ressaltar que comportamentos violentos podem ser enquadrados na Lei Maria da Penha e que mulheres vítimas de agressão ou ameaça podem solicitar medida protetiva. É possível registrar denúncia por meio do telefone 180, da Central de Atendimento à Mulher.

A psicóloga explica que o ciúme patológico envolve suspeitas irracionais de infidelidade, tentativas de controle do parceiro, crises de raiva, medo ou culpa, além de sintomas físicos como taquicardia, sudorese, alteração de apetite e insônia.

Já o amor patológico ocorre quando a pessoa gasta tempo excessivo cuidando do parceiro, negligencia a própria vida, compromete trabalho, estudos e demais relacionamentos e mesmo assim não consegue mudar o próprio comportamento.

“O indivíduo percebe que ama demais e que isso está atrapalhando sua vida, mas repete os mesmos padrões”, afirma.

Tais comportamentos são com frequência retratados em obras de ficção. Na TV brasileira, a novela “Em Família” (2014), de Manoel Carlos, abordou o ciúme patológico por meio do personagem Laerte (Gabriel Braga Nunes), que tenta controlar os passos de Helena (Julia Lemmertz) e demonstra dificuldade em lidar com a autonomia da parceira.

A psicóloga da USP afirma que uma mesma pessoa pode apresentar os dois transtornos, ciúme e amor patológicos, caso da personagem Alex Forrest (Glenn Close), do filme “Atração Fatal” (1987).

Na obra, Alex demonstra dependência emocional extrema e não aceita o fim do relacionamento. Trata-se de amor patológico —o amor causa sofrimento e leva a pessoa a repetir padrões que prejudicam a própria vida. À medida que a história avança, a personagem também desenvolve ciúme irracional e desproporcional, com perseguição e outras reações violentas.

Segundo o psicólogo Rodrigo Acioli, conselheiro do Conselho Federal de Psicologia (CFP), é comum que o paciente demore a reconhecer o problema.

“Muitas vezes a pessoa está tão imersa naquele pensamento ou comportamento que não percebe o sofrimento que causa a si mesma ou a terceiros. É comum que familiares e amigos notem primeiro, por isso o olhar das pessoas próximas é fundamental”, explica.

Costa afirma que esses quadros podem ocorrer também com ex-parceiros e que comportamentos agressivos ou invasivos são sinais de alerta. “Não é frescura sofrer por amor. Reconhecer o problema e buscar ajuda faz toda a diferença”, afirma.

Os resultados do tratamento, segundo a psicóloga, são positivos: avaliações feitas no início e no fim do programa mostram redução significativa no controle do ciúme. Além de aprenderem a estabelecer vínculos mais saudáveis, os participantes costumam relatar melhora da autoestima e da qualidade das relações afetivas.

Acioli lembra que não existe uma linha terapêutica única para o tratamento de amor e ciúmes patológicos e afirma que há diversas abordagens eficazes, como a terapia cognitivo-comportamental, a psicanálise e a neuropsicoterapia.

“Cada pessoa tem uma história de vida e uma personalidade. O importante é procurar um profissional qualificado, psicólogo ou psiquiatra, com formação reconhecida e experiência clínica. Mais do que o método, é a qualidade da escuta e o vínculo com o profissional que fazem diferença”, diz.

O amor e o ciúme patológicos costumam aparecer associados a outros transtornos, como ansiedade, depressão. Segundo Acioli, trata-se de um quadro de comorbidade, em que um transtorno pode gerar ou intensificar outro. Ciúme excessivo, por exemplo, pode causar ansiedade, que, por sua vez, reforça os comportamentos de vigilância e controle.

Transtornos da saúde mental podem ser tratados no SUS (Sistema Único de Saúde), e o primeiro passo é procurar uma UBS (Unidade Básica de Saúde). O médico da unidade avalia a gravidade e pode encaminhar o paciente para um Caps (Centro de Atenção Psicossocial), onde um psiquiatra define se o tratamento deve ser terapêutico, medicamentoso ou combinado.

O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde.

Autoria: FLSP

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