Aos 70 anos, a dona de roça Vicência Coelho trabalha e cuida da casa durante a semana, mas, aos sábados e domingos, dança forró, frequenta os festejos nas comunidades vizinhas e marca presença na igreja.
Na opinião de Vicência, as atividades religiosas proporcionam encontros que servem também para conhecer e interagir com novas pessoas.
A idosa mora em Bequimão, no Maranhão, e participou de um estudo com quilombolas que apontou que a maior participação social está associada a uma melhor cognição na população mais velha.
Ela vive no Quilombo Conceição, uma das 11 comunidades rurais quilombolas carentes participantes do Iquibec (Inquérito Populacional sobre as Condições de Vida e Saúde dos Idosos Quilombolas de uma Cidade da Baixada Maranhense), de autoria de pesquisadores da Rutgers University (EUA) e da UFMA (Universidade Federal do Maranhão). O estudo foi publicado na revista International Psychogeriatrics em agosto deste ano.
Os pesquisadores fizeram uma análise exploratória (etapa inicial que tem o objetivo de compreender os dados antes de aplicar modelos estatísticos) para entender quais das atividades sociais isoladamente estariam associadas à cognição. As questões relacionadas à religião e à fé impulsionaram o resultado. A descoberta pode ajudar a entender o papel central da vida religiosa e espiritual dentro das comunidades quilombolas.
Também integram o inquérito os quilombos Rio Grande, Ramal de Quindiua, Mafra, Santa Rita, Juraraitá, Marajá, Pericumã, Sibéria, Suassuí e Ariquipá, localizados no mesmo município.
“Percebi que, intuitivamente, havia uma diferença nas condições de saúde da população quilombola que envelhecia nesses contextos vulnerabilizados em relação ao restante da população idosa. Então, pensei numa forma de tentar identificar os determinantes da saúde dessa população e olhar também as características do envelhecimento nesse lugar”, diz Bruno de Oliveira, professor e pesquisador da UFMA.
O estudo incluiu 221 pessoas, de 60 a 104 anos, de ambos os sexos —feminino (55,6%). A maioria autodeclarada preta ou parda (88,3%), analfabeta (56,1%) e moradora em quilombo há pelo menos 30 anos (79%).
Trata-se de um estudo transversal (pesquisa de observação, que coleta dados de uma população numa única ocasião, para descrever a prevalência de doenças ou condições e a relação entre variáveis) e não se pode concluir causa e efeito.
“É importante para gerar hipóteses e recomendações de fatores, possivelmente um fator de proteção muito importante num contexto de privação material ou de vulnerabilidade social, que é o valor da comunidade e das relações sociais”, explica Sharon Sanz Simon, psicóloga e neurocientista, professora da Universidade Rutgers (EUA) e pesquisadora do Krieger Klein Alzheimer’s Research Center.
Segundo Simon, na ausência do Estado e dos direitos básicos, os recursos que os quilombolas possuem são a interação, a ajuda mútua.
“Determinantes sociais de saúde no contexto de envelhecimento têm uma série de fatores de risco para o envelhecimento cerebral, para a demência. E nessa população, por ser tão marginalizada, historicamente vulnerável em relação ao acesso à saúde, educação e condições de moradia, entendemos que há uma oportunidade não só para dar visibilidade, mas também compreender o que significam esses fatores de risco e proteção no envelhecimento”, afirma a pesquisadora.
“Um exemplo bem claro é o percentual de analfabetos. Baixa educação e analfabetismo são fatores de risco importantes no envelhecimento”, completa.
A seleção do grupo ocorreu a partir da articulação com a Secretaria Municipal de Assistência Social e dos Agentes Comunitários de Saúde que atendem os 11 locais.
As coletas foram realizadas de 2018 a 2024, com parada em 2020, na pandemia de Covid. Os desafios logísticos enfrentados pelos pesquisadores foram intensos. Os quilombos estavam em áreas rurais remotas. O tempo de deslocamento até as comunidades chegava a quatro horas. Algumas vezes, passaram dias na área dos quilombos. Além disso, alto nível de analfabetismo, acesso limitado ao saneamento básico e aos serviços sociais e de saúde.
A análise envolveu dados demográficos, de condições de vida, fatores de risco cardiovasculares, humor, idade, sexo e a associação entre a cognição e participação social.
Vicência está entre os 56,5% que participam de atividade social organizada (centro comunitário, grupo religioso ou associação cultural). Há uma diversidade religiosa entre os quilombolas. Muitos se autodeclaram católicos com práticas frequentes de religiões de matrizes africanas, inclusive o Candomblé.
“Criamos um escore composto de atividades sociais. Nele observamos que as atividades que as pessoas mais fazem são as participações nas associações de moradores e reuniões comunitárias, e aquelas que têm como base a fé, a religião. Não houve diferenças de gênero em relação às atividades, à participação. De forma geral, os mais velhos são os que menos participam, explica Simon.
Os pesquisadores pretendem expandir o estudo para se tornar longitudinal, acompanhando a população quilombola ao longo do tempo.
“A ideia é expandir o protocolo para não só mais escalas e mais tempo de coleta, mas também ter mais dados biológicos de sangue e de neuroimagem. Vamos aplicar outros questionários e combiná-los com os exames de imagem para melhor compreensão fisiológica e orgânica do processo e entender os mecanismos biológicos do envelhecimento dentro desse contexto social”, finaliza a pesquisadora.