Atividade física é necessidade evolutiva da espécie humana – 28/10/2025 – Bruno Gualano

No célebre dualismo cartesiano, a mente é a res cogitans, a substância pensante, e o corpo é res extensa, sujeito às leis mecânicas. Mas como a mente imaterial move o corpo material? E, inversamente, como eventos corporais dão origem a sensações e paixões na mente?

Para Descartes, esse nó é desatado pelos espíritos animais –entes sutis que circulam velozmente pelos nervos, transmitindo impulsos e permitindo que a mente comande os movimentos corporais.

Com uma boa dose de licença poética, podemos traçar um paralelo conceitual entre os espíritos animais e as miocinas da fisiologia moderna. Se aqueles são mensageiros mecânicos que convertem comandos mentais em movimento e sensação, estas são sinalizadores bioquímicos liberados pelo músculo em contração, capazes de atuar no próprio tecido muscular e em diversos outros –como o adiposo, o hepático e o cerebral– modulando o metabolismo humano como um todo.

Desvendar o papel das centenas de miocinas catalogadas é essencial. Além de explicar como age o exercício, esse conhecimento abre caminhos para o desenvolvimento de drogas que simulem seus efeitos. Uma das mais estudadas é a IL-6 (interleucina 6), cuja ação é aparentemente paradoxal: produzida em excesso por células do sistema imune –como ocorre na obesidade ou na artrite– exacerba a inflamação; secretada pelo músculo durante a contração, reduz a glicemia, estimula a oxidação de gordura e atenua a inflamação.

Para investigar em qual medida a IL-6 é necessária aos efeitos metabólicos do exercício, comparamos mulheres com artrite reumatoide –doença inflamatória crônica que danifica as articulações– que recebiam um medicamento que bloqueia o receptor de IL-6 (tocilizumabe) ou outras drogas biológicas anti-inflamatórias (inibidores de TNF-α), usadas como controle. Os grupos, pareados por idade, peso e características clínicas, realizaram 30 minutos de exercício em intensidade controlada. Na sequência, medimos a captação de glicose pelo músculo e a sensibilidade à insulina.

Contrariamente à nossa hipótese inicial, a regulação do açúcar circulante após o exercício foi semelhante entre os grupos, sugerindo que o bloqueio da IL-6 não prejudicou as respostas metabólicas. Esse achado permite especular que a atividade física é uma necessidade evolutiva tão arraigada na espécie humana que não há um único mecanismo capaz de explicar seus múltiplos e sistêmicos benefícios.

Em apoio a essa ideia, analisamos fragmentos de músculo das participantes sob cada tratamento e observamos padrões distintos de moléculas envolvidas na captação de glicose. Apesar das diferenças moleculares, as respostas fisiológicas, como mencionamos, foram semelhantes. Esse fenômeno ilustra a chamada redundância fisiológica – espécie de “backup biológico” sustentado por múltiplos sistemas, vias metabólicas e genes que podem desempenhar funções análogas. Assim, se um caminho se encontra bloqueado – como o da IL-6 em nosso estudo – outros entram em cena para assegurar os benefícios do exercício.

O conceito de redundância fisiológica também ajuda a explicar outro fenômeno interessante: embora as respostas ao exercício variem significativamente entre as pessoas, todas elas – sejam atletas ou sedentárias, saudáveis ou doentes, jovens ou velhas, homens ou mulheres – tendem a apresentar alguma adaptação positiva diante de um estímulo adequado. Pelos espíritos animais ou pelas miocinas, todos os caminhos do movimento levam a Roma.


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Autoria: FLSP

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